domingo, 23 de novembro de 2014

O próximo passo


Governar não é a arte do impossível – mais do que qualquer outra coisa é simplesmente a arte do possível. Dilma está (aparentemente) demonstrando isso, principalmente nesse início de segundo mandato. Não dá para governar enfrentando os donos do capital/comunicação e sair impune. A campanha eleitoral recente deixou isso bem claro. E Dilma começa essa nova fase dando mostras de que entendeu o recado. Sem um Congresso confiável e a corrupção entranhada no país inteiro não há como bater no peito e declarar “ganhei a eleição e fim de papo”. Ganhou-se apenas uma eleição, não uma revolução. E mesmo nas revoluções é preciso saber dar um passo atrás e dois à frente. É difícil engolir a fazendeira Kátia Abreu como possível Ministra da Agricultura. Ou os representantes do mercado assumindo a direção de nossa economia. Mas esse é o momento para as esquerdas saberem se unir e ganhar força para novas conquistas e, como primeiro passo, mobilizar o país por uma reforma política profunda. Talvez isso possa compensar o desânimo de pessoas como Janio de Freitas em (mais um de seus excelentes artigos) “O primeiro passo”, publicado neste domingo, na Folha.
O primeiro passo
Janio de Freitas
Folha, 23/11/2014

A escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, vista de fora, é uma decisão política, não econômica. Faz supor uma escolha de Dilma Rousseff por temor da voracidade com que os conservadores ambicionam a retomada do Poder perdido. Presenteia-os, parece, na suposição de aplacá-los.
De fora, ainda não há como saber –e muito menos crer– de algum entendimento prévio sobre linha de política econômica que possa tornar a escolha mais inteligível. Seja como for, coerente com o sentido da campanha de Dilma, não é.
A escolha não tem coerência nem com o momento em que é feita. Na manhã mesma em que fez uma reunião para definir a escolha, liberada não oficialmente à tarde, o caderno "mercado2" da Folha apresentava como manchete: "Desemprego recua em outubro e atinge 4,7%; renda bate recorde". A seção "Economia" do "Globo", com uma nota na primeira página, também dava como manchete: "Emprego em alta, renda recorde".
Aos dois jornais não faltaram, claro, o "mas" e o "apesar de". Ainda assim, das manchetes pode-se entender que a economia esteja mais para o massacrado Guido Mantega do que para o Joaquim Levy que bem poderia ser ministro em um governo de Aécio Neves.
O histórico de Joaquim Levy não deixa dúvida sobre o seu conservadorismo, posto em prática evidente ao menos desde que foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento no governo Fernando Henrique. Conservadorismo confirmado no governo Lula, quando foi um dos inspiradores da política econômica que consagrou Antonio Palocci nos setores do domínio financeiro. E conservadorismo consolidado como secretário do Tesouro, quando Levy foi o ponto de resistência a gastos e outras medidas de linha social pretendidas no governo Lula.
Caso o histórico não baste, o presente garante: se não fosse adepto de concepções do conservadorismo neoliberal, Joaquim Levy não seria diretor do Bradesco. O que prova não se tratar, até agora, de pessoa incoerente.
Também sem comunicação oficial quando escrevo, a apontada indicação da senadora Kátia Abreu para a Agricultura sugere, ou confirma, uma disposição incomum de Dilma Rousseff para incrementar problemas com as correntes não conservadoras. A senadora exerce com muita competência a liderança do agronegócio e dos grandes proprietários de terra. Mas nem todos os interesses que defende coincidem com o que deveriam ser objetivos do governo, de todo governo.
Dilma Rousseff entra no segundo mandato devendo muito para reparar os desempenhos deploráveis do seu governo em três capítulos da desgraça nacional: o problema indígena, sem as demarcações territoriais devidas e com o genocídio em progressão; a questão fundiária em geral, com imensos territórios tomados e explorados; e, ainda e sempre, a reforma agrária, pendente de correções e de avanços. Três assuntos em que o responsável pela Agricultura tem deveres e poderes muito grandes. Três assuntos em que os interesses representados pela senadora Kátia Abreu conflitam, em todos os sentidos desta palavra, com as vítimas e com as obrigações e as dívidas administrativas e sociais do governo Dilma.
O primeiro movimento para o novo governo parece feito em marcha a ré.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

ÓDIO X DIÁLOGO - O TERCEIRO TURNO SÓ COMEÇOU...





Neste domingo, dois sociólogos saídos da velha esquerda, ocuparam páginas opostas do Globo. Na página par, Fernando Henrique, um antigo estudioso da ciência política, particularmente do marxismo, escreveu Diálogo ou novas imposturas?”, onde procurou manter o clima belicoso das eleições presidenciais, com fortes ataques ao governo e ao PT particularmente. Na página ímpar, Moreira Franco, ex-dirigente da AP (Ação Popular), movimento político associado à igreja que ganhou mais destaque na oposição ao golpe de 64, dá entrevista com o título de “É grave levar para a disputa política a divisão do país”. Os textos atendem muito a que cada um se propõe, tentando escolher o foco ideal para os próximos movimentos políticos, principalmente no âmbito do Congresso.
Fernando Henrique, ex-Presidente e tucano-mor do mundo político, fez o discurso da valorização da beligerância eleitoral (a exemplo do que fez Aloysio Nunes no Senado). Começa pelo título e, logo no segundo parágrafo, escreve que “é bom retomar logo a ofensiva na agenda e nos debates políticos”. E em seguida “não se pode aceitar passivamente que a 'desconstrução' do adversário, a propaganda negativa à custa de calúnias e deturpações de fatos, seja instrumento da luta democrática”. Misturou duas coisas (“desconstrução” e “calúnias/deturpações de fatos”) como se fossem uma coisa só. Mas certamente é daqueles que pensa que quando sou eu que faço, é “desconstrução”; quando é o adversário, trata-se de “calúnia”. No afã de manter a tensão pós-eleitoral, atrapalhou-se com pesquisas e o segmento mais rico do eleitorado. Disse ele:
“A propaganda incentivada pela liderança maior do PT inventou uma batalha dos “pobres contra os ricos”. Eu não sabia que metade do eleitorado brasileiro, que votou em Aécio, é composta por ricos... É difícil acreditar na boa-fé do argumento quando se sabe que 70% dos eleitores do candidato do PSDB, segundo o Datafolha, compunham-se de pessoas que ganham até três salários mínimos. A propaganda falaciosa, no caso, não está defendendo uma classe da exploração de outra, mas enganando uma parte do eleitorado em benefício dos seus autores”.
Além de se enganar com percentagens e segmentos, quem está tentando enganar é Fernando Henrique. Como calcula-se em apenas 7% a classe alta no Brasil, é claro que ninguém pensou em dizer que entre os 51 milhões de eleitores do Aécio a maioria é de classe alta. Aécio foi o candidato dos mais ricos porque defendeu propostas mais afinadas com os segmentos mais ricos da sociedade. Essa é a verdade que a campanha petista propagou e que ficou demonstrada com o resultado da eleição dando a Dilma a maioria dos votos dos segmentos de menor renda e a Aécio a maioria dos votos dos segmentos de renda mais alta (segundo pesquisa Datafolha divulgada na véspera do segundo turno). Quem é que “deturpa os fatos”, Fernando Henrique?
Moreira Franco fez o discurso do diálogo. Começou por declarar que “não existe nada mais grave na história da humanidade do que você levar para a disputa política a divisão do país”. Tomou essa posição em defesa não apenas do governo de que faz parte (Ministro da Aviação Civil), como – principalmente – em defesa dos interesses do seu partido, o PMDB, o segundo em deputados federais e o maior partido de “centro” do país. À medida que o “diálogo” vier para o âmbito do Congresso, o PMDB terá mais força como fiel da balança, ampliando seu poder de fogo.
Enquanto, através de Fernando Henrique, o PSDB procura firmar-se como porta-voz da oposição dentro do Congresso (e ao mesmo tempo manter de prontidão o vasto eleitorado oposicionista que conseguiu arrebanhar nesta eleição), o PMDB, através do discurso do diálogo com o Congresso no centro de referência, procura preservar o poder de conduzir os destinos do país através do controle da maioria parlamentar. A bem da verdade, nenhuma dessas posições interessa ao país. O maior recado dessa eleição foi o da necessidade de reforma política. E a principal batalha desse "terceiro turno" deverá ser pela mobilização da sociedade em defesa de uma reforma política profunda, independente, realmente popular. Isso não pode ser deixado nas mãos de quem tem o maior interesse em deixar tudo como está.