terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O Ocidente perdeu a autoconfiança

Bem interessante esse texto de Gideon Rachman (Financial Times). Dá uma boa discussão. Reproduzo, com tradução rápida.

O Ocidente perdeu a autoconfiança
(The west has lost intellectual self-confidence)
Gideon Rachman

Na primeira metade da minha vida, a política internacional foi definida pela Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim encerrou aquela era e começou outra: a era da globalização. Agora, 25 anos depois, parece que estamos mais uma vez testemunhando o fim de uma era.
A sensação de que as coisas estão mudando é mais forte no campo das ideias. Nos últimos anos, o Ocidente perdeu a confiança na força dos três pilares em que o mundo pós-guerra fria foi construído: o mercado, a democracia e o poder americano.
Os sucessos dessas três ideias estavam, evidentemente, interligados. Terminada a guerra fria, era natural perguntar por que o sistema ocidental prevaleceu. A conclusão óbvia foi que os sistemas baseados no mercado e na democracia tinham simplesmente superado economias e  políticas sob comandos autoritários. Como dizia o ditado popular: "A liberdade funciona". Acontece que os EUA não eram apenas a única superpotência sobrevivente. Os Estados Unidos também gostavam de hegemonia intelectual.
Após a queda do Muro, houve um novo vigor a partir da expansão da economia de mercado e das políticas democráticas em todo o mundo. Era natural que o consenso de mercado livre defendido pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional viesse a ser conhecido como o "Consenso de Washington".
A política resultante do Consenso de Washington teve a crença de que a democracia acabaria por triunfar não apenas no leste da Europa, mas em todo o mundo. E nos anos 90, em países tão diversos como a África do Sul, o Chile e a Indonésia, de fato houve transições inteiramente bem sucedidas para a democracia. Por trás desses desenvolvimentos econômicos e políticos havia o fato de que os EUA eram incontestavelmente a superpotência global e o centro do sistema militar e estratégico em todo o mundo – da América Latina à Ásia Oriental, Oriente Médio e Europa.
De certo modo, esse é o mundo em que vivemos até hoje. No entanto, há dúvidas crescentes no Ocidente sobre a trindade de ideias em torno do qual o mundo pós-guerra fria foi construído: o mercado, a democracia e o poder americano. Em cada caso, houve fatos que minaram a certeza disso.
A fé nos mercados livres foi fortemente abalada pela crise financeira de 2008 e a subsequente Grande Recessão – e nunca se recuperou disso. Embora a depressão global que muitos temiam tenha sido evitada, a crença exuberante na capacidade dos mercados livres para elevar os padrões de vida em todo o mundo não voltou. Em grande parte do Ocidente, em vez disso, o debate econômico foi dominado pela discussão sobre a desigualdade de renda – com a Europa contribuindo com uma ansiedade extra em relação ao Euro e à alta taxa de desemprego. As estrelas dos mercados emergentes, como o Brasil e a Índia, perderam o charme, e até mesmo a China está reduzindo o ritmo. A crença de que existe uma fórmula baseada no mercado em que todos os formuladores de políticas sensatas podem se basear – um "consenso de Washington" – evaporou-se, para ser substituída por uma falta de consenso mundial.
Por sua vez, o “evangelismo democrático” foi abalado pelos horrores desencadeados pelas revoltas árabes. A onda de mudança revolucionária que atingiu o Oriente Médio em 2011, inicialmente, parecia o equivalente árabe da queda do Muro de Berlim. Sistemas autoritários foram caindo e novas democracias pareciam estar surgindo. Mas o fracasso da democracia em criar raízes em qualquer um dos países que sofreram revoluções – com a exceção da Tunísia – minou a fé no avanço inevitável da liberdade política.
Da mesma forma, é preocupante uma crescente descrença na capacidade das democracias tradicionais em garantir governos competentes. Nos EUA, o respeito pelo Congresso alcança seus níveis mais baixos. Em países europeus, como Itália e França, os sistemas políticos parecem incapazes de garantir reformas ou crescimento – e os eleitores estão flertando com partidos extremistas.
O terceiro pilar da globalização era o poder americano. Isso também parece menos confiável do que há uma década. Aqui, o fator principal foi a guerra do Iraque. Esse conflito, desencadeado pelo presidente George W. Bush, inicialmente parecia uma demonstração triunfante do poder americano com Saddam Hussein sendo varrido. Mas a incapacidade dos Estados Unidos para estabilizar o Iraque ou o Afeganistão, apesar de muitos anos de esforço, demonstraram que, apesar de os militares americanos poderem destruir um regime hostil em semanas, não podem garantir um pós-guerra estável. Mais de uma década depois da queda de Bagdá, os Estados Unidos estão de volta à guerra no Iraque – e no Oriente Médio inteiro há um violento estado de anarquia.
A ascensão da China também levantou questões sobre como é que o longo reinado dos Estados Unidos como "superpotência única" pode continuar. Em outubro, o FMI anunciou que – em termos de poder de compra – a China é hoje a maior economia do mundo. Ela ainda está a quilômetros de alcançar o nível americano na política internacional. Mas a capacidade e a vontade dos Estados Unidos de manter o seu papel de hegemonia global é uma questão em aberto.
Dito isso, vale lembrar que a queda do Muro de Berlim aconteceu num momento em que muitos nos EUA estavam obcecados pela ascensão do Japão. Isso serve como lembrete de quão rápido o mundo das ideias pode se transformar e as preocupações da moda podem desaparecer. Mas, enquanto esse início de ano mostra um renascimento da economia norte-americana, o renascimento da autoconfiança ocidental ainda parece bem distante.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Fernando Henrique quer avançar com um passo à frente e dois pra trás.




Fernando Henrique é esperto. Bem formado e informado, usa as palavras astutamente na busca de vender o seu pássaro, digo, o seu peixe. No artigo que publicou domingo, “Inovar na política”, tenta convencer que inovar significa retroceder ao passado tucano. Aponta suas penas em várias direções, na esperança de provar que os tucanos não voam para trás. E nesse afã acaba, com todo o respeito, cometendo algumas papagaiadas.
Diz que “na última década renasceu no Brasil a ilusão de que tudo seria feito e ‘salvo’ pelo Estado”. Quem afirmou algo assim?
Está cabendo ao Estado fazer o que é preciso fazer e que não era feito (ou não era bem feito) nem pelo Estado nem pelo não-Estado. Alguém tinha que fazer. E os governos dos últimos 12 anos fizeram o possível e o impossível para preencher lacunas deixadas. Conseguiram alguns sucessos importantes. Por exemplo, quando Fernando Henrique deixou o governo, o analfabetismo era 11,9% em 2013 (os dados da última administração publicados pelo Globo no dia 1º são praticamente todos de 2013) tinha caído para 8,5%. A mortalidade infantil era de 26,04% caiu para 15,02%. A população com acesso à rede de esgoto era 44% – subiu para 55,9%. A inflação estava em 12,53% caiu para 6,38%. A taxa de desemprego, 9,1% caiu para 6,5%. O PIB per capita era R$ 8.382,24 subiu para R$ 24.065,00. O investimento estrangeiro direto era de US$ 16,6 bilhões – subiu para US$ 60 bilhões. O salário mínimo era de 200 reaischegou ao final de 2014 a 724 reais (em 2015 já está em 788 reais). Isso sem falar do Minha Casa Minha Vida, que antes não existia nada similar. Você vai perguntar agora – e o crescimento econômico? Realmente o crescimento econômico sobre o PIB está longe do desejado – era de 2,7% em 2002 e a previsão para 2014 é de 0,14%. E houve outros problemas sérios. Corrupção e reação neoliberal muito forte (no Brasil e no mundo). Mas nada justifica bater asas rumo ao passado, a não ser a decisão pura e simples de aninhar-se na ideologia tucana. Nesse ponto, Fernando Henrique manda um dos seus tijolaços (perdão, Brizola; desculpa, Fernando Brito) para acariciar o neoliberalismo: “Quem sabe superaremos o primitivismo político de considerar como 'neoliberal' tudo o que é necessário fazer para que as finanças públicas e a administração funcionem bem, respeitando suas possibilidades reais, mais ou menos elásticas conforme as circunstâncias, mas nunca infinitas, propiciando um clima favorável para que as pessoas, as organizações e as empresas possam expandir suas potencialidades”. Ora, Fernando Henrique, não tergiverse. A questão é de foco. Hoje, o foco está direcionado ao campo social, uma busca incessante para atender em primeiro lugar à população mais pobre. Já o “mercado”, por pior que esteja, vai bem, obrigado. Não precisa exatamente ser focado. Ao contrário, deveria apoiar (desculpe a ingenuidade...) o enfoque predominante. O seu governo baixou a crista, tirou o sapato, diante do Consenso de Washington, o laissez-faire econômico que levou à crise de 2008. Fica até engraçado quando lemos: “Sendo progressista, portanto, 'de esquerda', desejo que se consiga alcançar ‘consensos’ (aspas minhas) que melhorem o sistema político partidário, dando-lhe certa coerência ideológica”. Que Fernando Henrique me desculpe, mas não há consenso em considerá-lo “progressista” e/ou “de esquerda”. No passado remoto, pode ser; mais recentemente, o passado condena. Quando apresenta propostas para a reforma política, até que inicialmente parece estar no caminho certo: “Para dar passos iniciais bastam três emendas à Constituição: voltar a aprovar a 'cláusula de barreira' (...); proibir as coligações entre partidos nas eleições proporcionais; e vedar o uso de marketing político nas TVs. A TV seria usada apenas para debates entre candidatos ou para suas falas diretas à audiência”. Aqui, no final, há certo despreparo, já que tanto “debates entre candidatos” quanto “falas diretas à audiência” são também partes do marketing político. Para controlar os altos custos de campanhas (e torná-las mais democráticas) basta o fim do financiamento empresarial . Os partidos terão com isso que reduzir radicalmente seus custos de produção (a veiculação já é gratuita, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, que é paga e com efeitos negativos para a democracia).
Logo em seguida, Fernando Henrique defende o voto distrital, hoje criticado em países que adotam (vale consultar o Fair Vote americano). Mas todo o seu blábláblá tem o objetivo único de tentar vender para o seu bando tucano a diferença que ele faz entre o PSDB e o PT. Tenta parecer agradável, quando diz que os dois partidos são “primos”. Mas logo em seguida enche o texto de bicadas. Segundo ele, o PSDB seria mais contemporâneo, porque “reconhece explicitamente a necessidade de dar ao mercado o papel que lhe corresponde nas sociedades contemporâneas, da mesma forma que não atribui ao Estado todas as virtudes”. Ora, isso o PT também faz. A questão é, primeiro, definir exatamente que papel do mercado é esse e, segundo, não atribuir ao mercado todas as virtudes. Com os pés firmes no chão, fico com a certeza de que voar é com os pássaros. Mas voar pra trás é com os tucanos de Fernando Henrique.