Fernando publicou hoje no Globo um artigo, “David e Golias”, onde faz uma boa análise do momento político e econômico do mundo. Diz ele, comentando a crise americana: “parece que as classes médias e os mais pobres querem gasto público maior e emprego mais abundante, os conservadores querem ortodoxia fiscal sem aumento de impostos, os muito ricos pouco se incomodam com o gasto social reduzido, desde que a propriedade de cada um continue intocável”. E acrescenta sobre a crise europeia: “Na Europa, as coisas não andam melhores. Cada solavanco da economia americana aumenta o contágio, esta doença internética: as taxas de juros cobrados dos países ultra-endividados vão para as nuvens. A rua se agita, não faltam movimentos dos ‘indignados’ que veem o povo sofrer as agruras do desemprego e da desesperança e ainda ser cobrado para que as contas se ajustem. E, naturalmente, como nos Estados Unidos, os que mais têm e os que mais especularam ou esbanjaram (inclusive governantes imprevidentes) balançam a poeira e querem dar a volta por cima. Esperam que mais aperto, mais rigidez no gasto público e menos salários resolvam o impasse. Não se estão dando conta de que a cada xis meses uma nova tormenta balança os equilíbrios instáveis alcançados”.
Até aí, tudo bem. FHC começa então a falar do nosso momento: “E nós aqui, nesta periferia gloriosa, a quantas andamos? Longe do olho do furacão, cantamos glória pelo que fizemos, pelo que de errado os outros fizeram e pelo que não fizemos, mas, pensamos, pouco importa, o vendaval do mundo varreu a riqueza de uma parte do globo para outra e nos beneficiou”. FHC lembra a necessidade de uma nova agenda – que já existiria, e “está exposta cotidianamente pela mídia”, mas que seria difícil de levar avante porque faltaria algo como “o antigo ideal americano, para conter as divergências, o choque de interesses, e guiar-nos para um patamar mais seguro, mais próspero e mais coeso como nação”. A partir daí FHC escorrega feio. O que poderia significar uma contribuição para compreensão e superação das dificuldades no jogo de poder inerente ao relacionamento executivo-legislativo esbarra no ego estilo Nelson Jobim que Fernando Henrique sempre leva a tiracolo. Angustiadíssimo por não ter sido o autor da frase “nunca antes na história deste país”, acaba lançando a culpa de tudo em Lula – o “predestinado”, como ele alfineta. Acusa: “o lulismo anestesiou qualquer crítica não só ao sistema mas a suas partes constitutivas”. Conclui que Dilma “é menos leniente com certas práticas condenáveis do sistema”. Mas “sem leniências e cumplicidades entre as várias partes, como obter apoios para a agenda necessária à modernização do país?” E em uma associação nem tão sutil de Dilma com David e de Lula com Golias justifica o título do seu artigo finalizando com: “não há dúvidas de que, para se desfazer da herança recebida, será preciso (...) refazer os sistemas de alianças. É luta para Davis e, no caso, Golias é pai de Davi”.
Fernando Henrique tira toda a significância do seu artigo unicamente movido pela inveja. E ele não pode esquecer que a inveja é mortal. Saul (verdadeiro “pai político” de David) por inveja bem que tentou matá-lo após a queda de Golias. Ao contrário do que acontece com Fernando Henrique, felizmente a inveja não faz parte do universo de Lula e Dilma.
Artigo completo:
DAVI E GOLIAS
Fernando Henrique Cardoso
Sem leniências, como obter apoio para a agenda necessária ao país?
A propósito do atual dilema americano, a secretária de Estado, Hillary Clinton, disse que pela primeira vez em muito tempo não havia um abismo tão grande entre poder, economia e sociedade. Pode parecer banal, mas não é: nos Estados Unidos, o “ideal americano” dava solidez para um caminho em comum para o país. Havia tensões, tendências mais progressistas chocavam-se com outras mais conservadoras, o grande business sempre quis controlar mais de perto o governo, os governos ora se inclinavam para atender aos reclamos das maiorias, ora assumiam a cara mais circunspecta de quem ouve as ponderações da ordem, da econômica em primeiro lugar. Mas, bem ou mal, liberdade, democracia, prosperidade e ação pública caminhavam mais ou menos em conjunto.
E agora, poderia perguntar perplexa a secretária de Estado? Agora, digo eu, parece que as classes médias e os mais pobres querem gasto público maior e emprego mais abundante, os conservadores querem ortodoxia fiscal sem aumento de impostos, os muito ricos pouco se incomodam com o gasto social reduzido, desde que a propriedade de cada um continue intocável. No meio de tudo isso, a crise provocada pelo cassino financeiro surgiu como um terremoto. Logo depois, veio o marasmo da semi-estagnação e, pior ainda, desenha-se o que há pouco era impensável, a moratória do país mais rico do mundo! Por trás da peleja econômica corre a outra, mais profunda, a do poder: o Tea Party — os ultrarreacionários do Partido Republicano — levou o governo Obama às cordas. A agenda política, mesmo depois de “resolvida” a questão do endividamento, passou a ser ditada por eles: onde e quanto cortar mais no orçamento de um país que clama por muletas para reavivar a economia.
Na Europa, as coisas não andam melhores. Cada solavanco da economia americana aumenta o contágio, esta doença internética: as taxas de juros cobrados dos países ultra-endividados vão para as nuvens. A rua se agita, não faltam movimentos dos “indignados” que veem o povo sofrer as agruras do desemprego e da desesperança e ainda ser cobrado para que as contas se ajustem. E, naturalmente, como nos Estados Unidos, os que mais têm e os que mais especularam ou esbanjaram (inclusive governantes imprevidentes) balançam a poeira e querem dar a volta por cima. Esperam que mais aperto, mais rigidez no gasto público e menos salários resolvam o impasse. Não se estão dando conta de que a cada xis meses uma nova tormenta balança os equilíbrios instáveis alcançados. É como se daqui a 30 anos os historiadores olhassem para trás e dissessem: “ah, bom, a Grande Crise dos Derivativos começou em 2007/2008, foi mudando de cara, mas prosseguiu até que novas formas de produzir e de distribuir o poder começaram a dar sinais de vida lá por 2015/2020...”.
E nós aqui, nesta periferia gloriosa, a quantas andamos? Longe do olho do furacão, cantamos glória pelo que fizemos, pelo que de errado os outros fizeram e pelo que não fizemos, mas, pensamos, pouco importa, o vendaval do mundo varreu a riqueza de uma parte do globo para outra e nos beneficiou. Será que é assim mesmo? Será que a proeza de evitar as ondas da tsunami impede que a malignidade do resto do mundo nos alcance? Tenho minhas dúvidas. Falta-nos, como impuseram os reacionários americanos a Obama, uma agenda, mas que seja nova e não a desgastada do “clube do chá” americano. A nova agenda existe, está exposta cotidianamente pela mídia e não é propriedade de um partido ou de um governo. Mas onde está a argamassa, como o antigo ideal americano, para conter as divergências, o choque de interesses, e guiar-nos para um patamar mais seguro, mais próspero e mais coeso como nação?
Mal comparando, a presidenta Dilma está aprisionada em um dilema do gênero daquele que agarrou Obama. Só que, se no caso americano a crise apareceu como econômica para depois se tornar política, em nosso caso ela surgiu como política, mas poderá se tornar econômica. Explico-me: a presidenta é herdeira de um sistema, como dizíamos no período do autoritarismo militar. Este funciona solidificando interesses do grande capital, das estatais, dos fundos de pensão, dos sindicatos e de um conjunto desordenado de atores políticos, que passaram a se legitimar como se expressassem um presidencialismo de coalizão no qual troca-se governabilidade por favores, cargos e tudo mais que se junta a isso.
Essa tendência não é nova. Ela foi se constituindo à medida que o capitalismo burocrático (ou de Estado, ou como se o queira qualificar) amealhou apoios amplos entre sindicalistas, funcionários e empresários sedentos por contratos, e passou a conviver com o capitalismo de mercado, mais competitivo. Na onda do crescimento econômico, as acomodações foram se tornando mais fáceis, tanto entre interesses econômicos quanto políticos (incluindo-se neles os “fisiológicos” e a corrupção). No início, parecia fenômeno normal das épocas de prosperidade capitalista que seria passageiro. Pouco a pouco se foi vendo que era mais do que isso: cada parte do sistema precisa da outra para funcionar, e o próprio sistema necessita da anuência dos cooptáveis pelas bolsas e empregos de baixo salário, e precisa de símbolos e de voz. Esta veio com o “predestinado”: o lulismo anestesiou qualquer crítica não só ao sistema mas a suas partes constitutivas.
É nesse ponto que o bicho pega. A presidenta é menos leniente com certas práticas condenáveis do sistema. Entretanto, quando começa a fazer uma faxina, quebram-se as peças da engrenagem toda. Sem leniências e cumplicidades entre as várias partes, como obter apoios para a agenda necessária à modernização do país? E, sem ela, como fazer frente à concorrência da China, à relativa desindustrialização, ou melhor, “desprodutividade” da economia, e como arbitrar entre interesses legítimos ou não dos que precisam de mais apoio do governo, advenham eles de setores populares ou empresariais? É cedo para prever o curso dessa história, que apenas começa. Mas não há dúvidas de que, para se desfazer da herança recebida, será preciso não só “vontade política” como, o que é tão difícil quanto, refazer os sistemas de alianças. É luta para Davis e, no caso, Golias é pai de Davi.