Precisão talvez não seja exatamente o forte de Rubens Ricupero, ex-Ministro da Fazenda de Itamar. Apesar de ter sido considerado pelo próprio ex-Presidente “o sacerdote do Plano Real, mais até do que o FHC”, Ricupero acabou ganhando fama por sua fala transmitida via satélite graças a um microfone (im)preciso da TV Globo que ele não sabia que estava aberto: "Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde". Em artigo de hoje na Folha (“Relógio cuco”), Ricupero falou abertamente, sem esconder que apoia a recente decisão do Banco Central de redução da Selic para fazer frente à crise mundial. Ao contrário de muitos analistas da oposição, atrasados, que defendem sem parar o aumento dos juros, Ricupero declara que “se a Suíça arrisca fixar a cotação do franco suíço em euros é porque a situação está para além de preta”. E vai além: “Os pragmáticos helvécios concluíram que, na falta de remédios internacionais, o remédio é cada um cuidar de si”. E continua: “o início da redução do juro e a elevação do IOF sobre capitais especulativos trouxeram alívio temporário no câmbio, graças também ao recrudescimento da crise mundial”. E conclui: “Se a crise apertar, a única saída será aproveitar a demanda interna para crescer. Para isso o remédio são ações mais fortes para estancar a hemorragia cambial. Sem dúvida é arriscado, mas como no dilema de Trotsky: risco em avançar, morte segura se ficarmos parados”. Nada mais preciso. Impreciso apenas seu texto de abertura: “Não é verdade, como pretende Orson Welles em O Terceiro Homem, que o relógio cuco tenha sido a única contribuição da Suíça à civilização”. Diferente do que lembrou Ricupero, Harry Lime, o personagem de Orson Welles no filme de Carol Reed a partir de novela de Graham Greene, pelo que lembro fala com certa visão crítica sobre a percepção que se tem da Suíça: “In Switzerland, they had brotherly love, they had five hundred years of democracy and peace, and what that produce?... The cuckoo clock”.
O artigo completo:
Relógio cuco
Rubens Ricupero
Se a Suíça arrisca fixar a cotação do franco suíço em euros é porque a situação está para além de preta
Não é verdade, como pretende Orson Welles em "O Terceiro Homem", que o relógio cuco tenha sido a única contribuição da Suíça à civilização.
Basta pensar na Cruz Vermelha, em Rousseau, Benjamin Constant, Madame de Stael, Pestalozzi, Le Corbusier, Piaget, Giacometti, Godard, elenco mais impressionante que o de alguns gigantes pela própria natureza.
Eis que o relógio cuco dá nova contribuição ao soar o alarme contra o perigo mortal da anarquia do câmbio. Ninguém no mundo se compara aos suíços em cautela e horror do não convencional. Se arriscam fixar a cotação do franco suíço em euros é porque a situação está para além de preta.
A diferença entre nós e eles é que, como os sicilianos, eles jamais ameaçam: preferem agir sem preanuncio. Nós somos incendiários nas declarações e tímidos na ação e não apenas por amor à bravata.
É que os suíços podem arrostar ataques especulativos com alguma chance de sair com vida.
Nós, sempre no fio da navalha, corremos o risco de soprarmos em inflação que já arde em cima da palha seca se tomarmos medidas ousadas como o corte do juro ou o controle de capitais.
Por isso nos limitamos por muito tempo a denunciar a guerra cambial no G20 e a pedir à Organização Mundial do Comércio que estude o efeito do câmbio no comércio. São gestos louváveis, mas anódinos, pois o mundo vive em situação de anarquia cambial, isso é, ausência total de normas e governo na matéria.
Desde que Nixon abandonou em 1971 o sistema de taxas fixas de Bretton Woods, virou letra morta o artigo 4º do acordo do FMI relativo a disciplinas cambiais.
Dizia-se na época que, após meses de turbulência, o câmbio flutuante produziria seu próprio equilíbrio. Estamos esperando há 40 anos e as tempestades já obrigaram a intervenções urgentes como as dos acordos do Plaza e do Louvre.
Na OMC o panorama não é mais animador. O artigo 15 do acordo geral dispõe que os países devem se abster de manipular as moedas a fim de não frustrar os objetivos do acordo. Como nunca se definiu o que significa "manipular" e "frustrar", nada se pode fazer.
Não existem recursos legais: antidumping cambial, taxas contra o subsídio indireto da manipulação, tudo carece de base jurídica.
Os pragmáticos helvécios concluíram que, na falta de remédios internacionais, o remédio é cada um cuidar de si. Se der certo e outros como o Japão seguirem o exemplo, aumentará a pressão sobre a moeda brasileira. Fez bem, assim, o governo em deixar de se queixar ao bispo e começar a tomar medidas.
Entre elas, o início da redução do juro e a elevação do IOF sobre capitais especulativos trouxeram alívio temporário no câmbio, graças também ao recrudescimento da crise mundial. Nada garante que dure. Estagnada devido ao câmbio, a indústria pouco se beneficiou até agora da explosão do consumo, capturada quase toda pelas importações.
Se a crise apertar, a única saída será aproveitar a demanda interna para crescer. Para isso o remédio são ações mais fortes para estancar a hemorragia cambial. Sem dúvida é arriscado, mas como no dilema de Trotsky: risco em avançar, morte segura se ficarmos parados.