domingo, 11 de dezembro de 2011

O desarranjo europeu


O ideograma chinês para se referir a Europa (ōu, em pinyin) significa “desarranjo”.  Talvez, infelizmente, seja exatamente isso o que melhor retrata a Europa que estamos vivendo. Talvez, não. Talvez “desarranjo” seja o que melhor retrata a Europa desde sempre, com suas guerras, seus desequilíbrios permanentes. Mas uma coisa é certa, o sonho da União Europeia é de um arranjo equilibrado, harmônico, bem diferente do que se vê. Talvez fosse apenas mais uma utopia (no grego – epa! – um “não-lugar”) tipicamente europeia. Os idealizadores da União Europeia talvez tenham sido apenas isso, idealistas. Não perceberam que na selva neoliberal “união” não faz parte do vocabulário – é cada um por si, Deus contra todos, como disse brilhantemente nosso “herói sem caráter”, repetido por Werner Herzog como título de filme (“Jeder für sich und Gott gegen alle”, apresentado no Brasil como "O Enigma de Kasper Hauser"). Percebemos, hoje, que na verdade a União Europeia nasceu para aprofundar a desigualdade e, consequentemente, para ser mais desunida. Como bem observou Francesco Saraceno, economista do Observatório Francês de Conjunturas Econômicas, em entrevista a Deborah Berlinck publicada hoje no Globo (Com desequilíbrio externo, Europa ‘caminha na direção da depressão’), fizeram uma “Europa baseada na ideia de que o crescimento virá de fora. O que tentam fazer hoje é conter a demanda doméstica e a política macroeconômica, esperando que o crescimento venha das exportações. É o modelo alemão, o que é uma loucura”. Uma loucura principalmente porque tentaram empurrar um modelo padrão sem compensações em realidades tão diversas. Como é que a Grécia pode pôr seus produtos no mercado externo com uma economia frágil e uma moeda (euro) supervalorizada? Não dá, não deu. Nem mesmo a Alemanha está conseguindo se dar bem, com endividamento de 81,7% do PIB, bem acima dos 60% estabelecidos para a zona do euro. Depois desse massacre à economia europeia (ou às economias europeias...), o próximo alvo, natural, é a democracia, com forte ameaça de ressurgimento de governos autoritários. Sinceramente, a Europa não merece passar por mais uma dessas. Não existe desarranjo maior do que virar terra de gregos e germanos.

Abaixo, entrevista de Francesco Saraceno, texto distribuído pela Agência O Globo.
É melhor uma Europa menor e mais integrada
Francesco Saraceno
O economista Francesco Sarace­­no, do Observatório Francês de Con­­junturas Econômicas (OFCE), es­­tá inquieto: para ele, a nova União Europeia (UE) que está emergindo sob as rédeas da Ale­­manha vai caminhar para o buraco, se seguir o modelo rigoroso e ex­­por­­tador da chanceler Angela Merkel.
Mas a decisão de 26 países de avançar na integração, deixando de fora o Reino Unido, que se recusa a seguir, diz ele, vai salvar o euro. Melhor uma Europa integrada menor, do que uma grande ineficaz, argumenta.
O Globo: A cúpula de Bruxelas decidiu por uma UE em duas velocidades: um grupo avança com a reforma do euro, outro fica de fora. Não é isso que deveria ser evitado?
Francesco Sarace­­no: Esta é praticamente a única boa notícia. Houve um reconhecimento de que não é possível avançar com toda a UE. E ficou clara a vontade dos que querem avançar. A cúpula não poderia acabar sem uma decisão. Precisamos de uma Europa mais integrada. Se isso só vai acontecer com uma parte dos 27 países mem­­bros da UE, que seja. É arriscado, há algumas armadilhas, mas no longo prazo é melhor uma zona do euro menor, integrada e que coopera, do que uma maior que funciona mal.
O Globo: Um novo tratado com 26 países não será difícil de negociar?
Francesco Sarace­­no:Tentar um novo tratado com 27 países, alguns deles resistindo, nunca vai funcionar. Precisamos deixar claro que a Europa vai avançar com quem quiser realmente. Um novo tratado não deverá ser problema, porque a decisão foi bastante consensual. E não será problema especialmente se os europeus convencerem os mercados e outros atores de que o que estão fazendo faz sentido. Se você me perguntar: a direção que estão tomando é boa? Não. Acho que estão na direção errada. Falar sobre isso é como abrir uma caixa de Pandora [segundo a mitologia grega, ela libera todos os males do mundo, quando aberta]. O importante é que, metodologicamente, comecemos a pensar em fazer algo sério com os querem fazer parte. E os que não querem… Não significa que a UE não vai trabalhar com eles ou que a UE não funcionará.
O Globo: O Reino Unido está se distanciando da UE. O que pode acontecer com o país?
Francesco Sarace­­no: Não sei. Não estou nem certo de que isso é duradouro. Não sei como os britânicos vão conseguir resolver, até mesmo diante da opinião pú­­blica deles, o fato de que são os únicos que não querem avançar na integração. Quantos meses ou anos o Reino Unido vai conseguir se isolar? Em 1960, o país optou por ficar fora da UE. Só queria ter acordo de livre comércio com Áus­­tria, Suíça, Noruega etc. Isso durou menos de um ano. A força da atração da UE foi tão grande que o Rei­­no Unido rapidamente voltou [pa­­ra a Comunidade Europeia, como era chamada a UE na época]. Se con­­­­seguirmos construir um bloco integrado e bem-sucedido, a médio prazo isso atrairá quem estiver fora.
O Globo: O Reino Unido resistiria estando fora da UE?
Francesco Sarace­­no: Não poderia ficar fora de uma UE que funciona. Se ela fun­­cionar, aposto que em cinco, seis ou sete anos, os britânicos voltam.
O Globo: Que UE está surgindo?
Francesco Sarace­­no: A Alemanha conseguiu quase tudo o que queria: um euro baseado em austeridade fiscal, que nega qualquer papel para política macroeconômica, e acha que é virtude ter superávit na conta corrente. É uma Europa baseada na ideia de que o crescimento virá de fora. O que tentam fazer hoje é conter a demanda doméstica e a política macroeconômica, esperando que o crescimento venha das exportações. É o modelo alemão, o que é uma loucura.
O Globo: Por quê?
Francesco Sarace­­no: É uma loucura porque se todo mundo fizer isso, vamos ter de fazer comércio com o planeta Marte. Não se pode ter um mundo em que todos só exportam. Até os chineses entenderam isso. A China tem passado os últimos dez anos tentando reequilibrar o seu modelo de crescimento na direção da demanda interna.
O Globo: A Alemanha no comando da UE então é ruim?
Francesco Sarace­­no: Não necessariamente. Na His­­tória, há sempre um país dominante liderando o caminho. Logo no início, foi a França, com Jean Monnet, depois a França, com François Mitter­­rand, de­­pois França com a Alemanha de Helmut Kohl [ex-chanceler do período da reunificação alemã]. Está claro que é preciso li­­derança. Mas a Alemanha está liderando a UE na direção errada e impondo uma visão que não vai mudar. Acham que fizeram tudo certo, então, defendem que todo mundo tem que agir como eles. Isso é um erro, porque os problemas da Europa são de desequilíbrio externo: alguns países exportando muito e outros importando muito. Os países do sul precisam gastar menos e arrumar a casa. Mas, ao mesmo tempo, os que gastam pouco precisam gastar mais. Se o Sul para de gastar e o Norte também não gasta, o resultado será depressão. E estamos indo nessa direção.
O Globo: O senhor não está otimista quanto ao futuro do euro?
Francesco Sarace­­no: É uma questão difícil. Acho que o custo do fim da zona do euro seria tão alto que o euro não vai acabar. Nesse sentido, não estou pessimista: não sou o profeta do pior. Acho que vão fazer o que for necessário. Minha preocupação é o modelo que estão escolhendo, que é frágil. O maior risco não é a implosão do euro: é uma década perdida para a economia europeia.