Entrevista publicada no Globo do ex-presidente português.
RIO - Mário Soares respirou política e socialismo a maior
parte de seus 86 anos. Referência na esquerda portuguesa e europeia, ele abre o
verbo diante do terremoto econômico e político que ameaça seu país e o
continente, ao defender a democracia do assédio dos mercados. De sua boca saem
palavras como "vergonha", "roubalheira",
"criminosos" quando se refere aos especuladores e às agências de
classificação de risco e à forma como vêm se impondo sobre os governantes
europeus. Ex-premier, ex-presidente e europeísta, Soares acaba de lançar em
Portugal a autobiografia "Um político assume-se". Na véspera da
segunda greve geral no país este ano, há dez dias, ele encabeçou, com outros
políticos e intelectuais, o manifesto "Mudança de rumo", atacando o
neoliberalismo e incentivando os portugueses a saírem às ruas para protestar
contra as medidas de austeridade: "Sou a favor de uma sociedade em que
haja o mercado livre, mas com regras éticas e disciplina", diz ele, por
telefone, da fundação que leva seu nome, em Lisboa.
Sandra Cohen: O senhor declarou que se a Europa não mudar, haverá uma
revolução. O que é preciso mudar diante de tão grave cenário econômico?
MÁRIO SOARES: É mudar o modelo econômico, acabar com essas
aventuras do neoliberalismo, com essas roubalheiras, com a economia virtual,
com as agências de risco, que estão a descontrolar completamente a vida não só
da Europa, mas do mundo inteiro. É preciso uma mudança de paradigma, uma
ruptura. O que é extraordinário é que os dirigentes políticos atuais, aqueles
que mandam ou que julgam que mandam, como é o caso da senhora Merkel e do
senhor Sarkozy, não mandam. Quem efetivamente manda hoje são os mercados, não
são os Estados. Os mercados e as agências de classificação de risco começam a
dizer coisas, e as finanças mudam completamente às custas deles. Os Estados só
obedecem. É absurdo que sejam os mercados a mandar. Sou a favor de uma
sociedade em que haja o mercado livre, mas com regras éticas e disciplina.
Sandra Cohen: Houve então uma distorção dos princípios da União Europeia?
SOARES: Houve uma total distorção e não só na União Europeia
como em toda parte. Mesmo na ONU. Quando aparece uma série de organizações,
como G-7, G-8 e o G qualquer coisa, são criações para acabar e destruir com a
ONU e que paralisam os fenômenos. Veja, por exemplo, os Objetivos do Milênio,
que foram assinados por cerca de cem chefes de Estado. Eram as melhores metas e
não se fez nada até agora. Está tudo assim, descontrolado. E não é só na Europa
e por causa do euro. Tudo está em causa. Li um artigo de uma autoridade do
Reino Unido já cogitando o futuro depois do euro. Por que a libra esterlina não
acaba? Porque há emissões sobre emissões, assim como se faz com o dólar nos
EUA. Se o Banco Central Europeu fabricasse moeda, esses problemas
desapareceriam. Mas tudo está entregue aos especuladores, que só se interessam
em ganhar dinheiro e fazer fortuna.
Sandra Cohen: O senhor estava à frente de Portugal quando o país aderiu à
União Europeia...
SOARES: Aderimos no mesmo dia que a Espanha, após oito anos
de negociações difíceis. Foi um acontecimento imenso para a Península Ibérica e
para a América Latina. Depois da nossa Revolução dos Cravos e da
redemocratização da Espanha, após a morte de Franco, houve uma série de
rupturas e mudanças em diversos países. Mas veio a queda da ideologia comunista
e os americanos se acharam donos do mundo e lançaram o neoliberalismo, do qual
estão sendo vítimas, como nós, europeus. Queremos agora outra revolução, uma
ruptura com o neoliberalismo. Começaremos vida nova, com novo projeto de
desenvolvimento.
Sandra Cohen: Qual a responsabilidade dos socialistas nessa crise?
SOARES: As duas famílias ideológicas que fundaram a UE
foram, de um lado, os socialistas ou social-democratas, que são a mesma coisa
exceto em Portugal. E de outro, as democracias cristãs. Foram essas famílias
que fizeram esse projeto europeu, que era um farol e um exemplo no mundo
inteiro. Foi o projeto mais importante que se fez no mundo, um projeto de paz,
de justiça social e bem-estar para as populações, respeito pelos direitos
humanos e pelas democracias. Isso nos deu um grande desenvolvimento. O mundo
olhava para a União Europeia como um projeto extraordinário. Não é por acaso
que povos que se debateram em duas guerras cruentas no século XX tenham
vivenciado mais de 50 anos em paz. É isso tudo que está em causa hoje com essas
mudanças econômicas e com esses especuladores, que são verdadeiros criminosos.
Sandra Cohen: Mas em que os socialistas erraram?
SOARES: Houve um socialista inglês chamado Tony Blair, que
nunca foi socialista, que enganou as pessoas, mas não a mim. Ele tentou
colonizar o Partido Socialista em função do que chamou de Terceira Via, que era
uma ligação ao neoliberalismo. E muitos socialistas europeus prevaricaram com
seus partidos, que entraram em crise e em decadência. E, por outro lado, houve
quem colonizasse as democracias cristãs como partidos populares, que são outra
coisa.
Sandra Cohen: Como o senhor vê os governos que são liderados por
tecnocratas, como Grécia e Itália?
SOARES: Da pior maneira, isso ofende a democracia, onde tudo
deve ser decidido pelo voto. Não faz o menor sentido.
Sandra Cohen: O que o senhor acha do governo do primeiro-ministro português,
o social-democrata Pedro Passos Coelho?
SOARES: Ele é um homem sério, decente e um patriota. Mas é
um neoliberal. Não é da minha família política. Não é com austeridade que se
resolvem problemas como os que temos em Portugal. Temos que ter uma certa
austeridade, mas não que arrase o crescimento econômico e faça subir o
desemprego como está ocorrendo. Senão, daqui a um ano, teremos imposto muitos
sacrifícios aos portugueses e estaremos ainda pior.
Sandra Cohen: Na semana passada, o senhor liderou um manifesto criticando
as medidas de austeridade em Portugal...
SOARES: Não fui contra. Num momento em que Portugal estava
numa situação muito difícil e sem liquidez, fui partidário de pedir dinheiro à
Europa. Mas não é justo que senhores que vêm da troika (comitê formado por FMI,
do BCE e Comissão Europeia) possam governar Portugal porque temos pouco
dinheiro ou estamos em dificuldade.
Sandra Cohen: O senhor cogitou criar um novo movimento paralelo ao Partido
Socialista, como foi especulado?
SOARES: Não, de jeito nenhum, é pura especulação.
Fui um dos fundadores do PS, fui socialista durante toda a minha vida política
ativa e nunca deixarei de ser. Nunca pensei em criar um movimento próprio.