Em 44, quando os países vencedores da Segunda Guerra resolveram se reunir para botar ordem na economia mundial, os Estados Unidos eram literalmente os donos do pedaço. Em situação diferenciadamente robusta, eles davam as cartas. Nas Conferências de Bretton Woods, como ficou conhecido o encontro, o ouro, representado pelo dólar, passou a ser “moeda padrão”. No Governo Nixon, diante de dificuldades na economia, foi interrompida a paridade ouro-dólar. Apesar de tudo, os Estados Unidos continuaram no comando, até que a crise do Lehman Brothers embaralhou tudo. Os herdeiros de Bretton Woods ficaram parecendo herdeiros de Woodstock – o mundo ficou "doidão". Os Estados Unidos ficaram profundamente abalados pelas dificuldades internacionais que eles ajudaram a criar. E agora está praticamente impossível manter o dólar como referência internacional. Principalmente após a enxurrada de 600 bilhões de dólares com que Obama inundou o mundo. O dever do G-20 que se reúne a partir de hoje é transformar Seul em “Seul Woods”, criar uma nova ordem para as relações entre as economias mundiais. É muito saudável a proposta de Mantega de criar uma cesta de moedas para substituir o dólar como moeda-referência. Nessa cesta, estariam dólares, euros, ienes, libras (que já participam do FMI), e também o real e o Yuan. Vai dar muito bate-boca nesse “Seul Woods”, mas a verdade é que os Estados Unidos não têm mais “condições de ser o país com a moeda de reserva universal”. O próprio Capitalismo aplaudirá essa mudança. E o mundo ficará menos “pirado”.
Leiam esse artigo do sociólogo e doutor em geografia humana Demétrio Magnoli publicado hoje no Globo:
G-20, o espetáculo da soberania
Demétrio Magnoli
Aquilo que o ministro Guido Mantega define como guerra cambial é a paisagem superficial da longa crise do sistema de Bretton Woods. O desequilíbrio entre os superávits chineses e os déficits americanos forma o relevo destacado nessa paisagem, mas não a esgota nem a explica. A crise de fundo tem uma dimensão econômica mas uma raiz geopolítica. No fim das contas, as engrenagens institucionais da ordem econômica global parecem emperradas, pela primeira vez desde o pósguerra.
O G-20, palco da estreia de Dilma Rousseff na cena internacional, não é a ferramenta milagrosa de solução da crise. Antes, figura como uma expressão singular do impasse evidenciado desde a quebra do Lehman Brothers.
Na sua versão original, o edifício de Bretton Woods praticamente excluía a necessidade de interferência política no sistema monetário. O dólar refletia o ouro, que lhe servia de lastro nominal, e uma coleção de moedas orbitava em torno do dólar segundo um mecanismo de paridades quase fixas. As fundações do edifício estavam assentadas na rocha da escassez de dólares, num tempo em que os EUA eram os credores do mundo. O arranjo promoveu as três décadas gloriosas de crescimento acelerado das economias de mercado. Voluntariamente, para salvar o capitalismo, os EUA ajudaram a criar centros independentes de poder econômico, sacrificando no caminho a posição de hegemonia absoluta adquirida durante a guerra.
Quando a escassez de dólares desapareceu, premido pelo financiamento da Guerra do Vietnã, Richard Nixon levantou a âncora da paridade com o ouro. Bretton Woods 2 não emanou de uma conferência, mas de um gesto unilateral do gerente do sistema: a retomada da prerrogativa soberana de imprimir moeda. No novo ambiente de flutuação cambial, a interferência política dos principais atores tornouse um imperativo. O G-5 e o G-7, seu sucessor, nasceram como respostas à necessidade de tecer consensos em torno da governança econômica global.
Eles operaram como um clube seleto, que compartilhava uma visão de mundo similar e tomava decisões informais em reuniões fechadas, protegidas do assédio da imprensa.
Desde 1971, os EUA agem de olho nas suas prioridades nacionais, dividindo com o resto do sistema internacional o custo das políticas domésticas.
A desvalorização de Nixon difundiu para o mundo as pressões inflacionárias geradas no interior da economia americana. Dez anos depois, a “revolução econômica” de Ronald Reagan provocou a elevação dos juros globais, o desvio da liquidez mundial na direção de Wall Street e uma forte apreciação do dólar. Poucos anos mais tarde, tornou-se inadiável uma brusca correção de rumo, com a depreciação do dólar frente ao marco e ao yen, algo que demandava a aquiescência da Alemanha e do Japão. Washington obteve o que desejava no Acordo do Plaza de 1985, uma prova indiscutível da eficácia política do clube das potências.
Há dois anos, os EUA buscam uma reedição do Acordo do Plaza, sob a forma de um pacto de limitação de superávits ao máximo de 4% dos PIBs nacionais, o que implicaria forte apreciação do renminbi chinês. A proposta faz sentido, mas não decola, pela conjunção de dois motivos. Um: a China não admite reproduzir a função desempenhada pelo Japão há um quarto de século.
Dois: o G-20 não é um G7 ampliado.
Os chineses temem repetir a trajetória do Japão depois do Plaza, quando o influxo de capitais coagulou-se em bolhas especulativas nos mercados de imóveis e ações, que explodiram na crise financeira de 1990 e redundaram numa estagnação de quase dez anos. O consenso interno em torno do renminbi depreciado estendese do núcleo dirigente do Partido Comunista, que resiste a conferir direitos econômicos à população, até as empresas transnacionais estabelecidas no país, que funcionam como plataformas de exportações.
O G-20, consolidado após a quebra do Lehman Brothers, reflete o declínio relativo dos EUA e a multiplicação dos centros de poder econômico gerados pela globalização. Ele não é um clube, mas um fórum. Seus integrantes, especialmente a China, não compartilham a visão de mundo que moldou o sistema de Bretton Woods. Suas reuniões, escancaradas ao escrutínio público, são teatros do espetáculo da soberania. Hoje, em Seul, chineses, alemães, brasileiros e sul-africanos erguerão suas vozes para acusar os EUA. Todos eles estarão de olhos postos nas manchetes dos telejornais e das publicações impressas.
A decisão do Federal Reserve de inundar o mercado com uma torrente de US$ 600 bilhões assinala um ponto de inflexão. Os EUA cansaram de esperar e resolveram mudar unilateralmente o cenário mundial. A China retrucou num tom incomum, anunciando que erguerá uma “muralha de fogo” contra o ingresso de capitais especulativos.
A guerra cambial assume a configuração de um confronto político e ameaça converter o G-20 em praça de combates. Em meio aos disparos, o governo brasileiro transforma a justificada indignação com a iniciativa americana em pretexto para circundar o debate sobre a conexão entre os gastos públicos, as taxas de juros e a apreciação do real.
Uma falência do G-20 não serviria a nenhum dos atores de uma ordem econômica global que precisa da “mão visível” da política para conservar alguma estabilidade.
Mas o espetáculo da soberania, por sua própria dinâmica, pode desandar em guerra cambial e comercial, arrastando o mundo pela ladeira da depressão.
Hoje, só o FMI, que faz reuniões fechadas, propícias à separação entre a soberania e seu exercício espetacular, tem as condições políticas para exercer a mediação entre as potências do G-20.
Depois dos retumbantes fracassos dos anos 90, o FMI pode encontrar um novo papel útil nessa função de intermediação.
Se isso acontecer, o Brasil de Dilma Rousseff reconhecerá na antiga instituição de Bretton Woods um parceiro insubstituível.
Ironias da história.