Merval Pereira, todos sabem, é um colunista político global com posições quase sempre excessivamente tucanas. Mas demonstra seriedade no que faz. Hoje sua coluna no Globo tem momentos bem interessantes ao falar da ascensão de Lula pela esquerda latinoamericana.
Disputa pela esquerda
Merval Pereira
O Lula hoje entrando no seu último ano de mandato estendido é um político em permanente ascensão popular, com uma votação que vai mudando territorialmente ao longo do tempo, até se transformar no principal líder da esquerda brasileira. Lula teve 17% da votação em 1989, 27% em 1994, e 32% em 1998, o que os especialistas chamam de “crescimento endógeno”, agregando os votos da esquerda: os 17% de Lula com os 16% de Brizola, em 1989, somam 33%; em 1994, os 27% do Lula com os 3% do Brizola chegam a 30%; e Brizola e Lula juntos em 1998 recebem 32% dos votos.
Mas essa liderança no espectro político de esquerda tem um contra pontono PSDB, a expressão de uma esquerda social-democrata que o derrotou duas vezes no primeiro turno graças à capacidade de Fernando Henrique Cardoso de ampliar sua coalizão partidária para a centro-direita.
O Lula que saiu, portanto, de 17% da votação no primeiro turno em 1989 para 48,5% no primeiro turno da eleição de 2006, e repetiu a mesma votação expressiva do segundo turno de 2002, recebendo mais de 60% dos votos do eleitorado, é um Lula diferente, mas que persegue a liderança da esquerda como um ativo político importante.
Em 1989, quando se identificava como “o candidato da classe trabalhadora”, tinha sua base nesse eleitorado de classe média de esquerda, basicamente nas capitais, e em concentrações industriais, como o Vale do Aço, o Sul Fluminense e a região do ABCD paulista.
E dependia do PT.
Quando se afirma como o principal líder de esquerda, para chegar à Presidência em 2002, tem que fazer o mesmo movimento para a centro-direita já feito pelo PSDB, e acaba indo para o interior do país, tornando-se hegemônico no Nordeste.
Na relação entre o Brasil e os Estados Unidos, o que está havendo é uma disputa de espaço político de influência na América Latina, também a partir da esquerda.
O que há de novidade é que o Brasil já é percebido como mais importante, em certas partes e em certos assuntos na região, do que os Estados Unidos, mesmo que o presidente Barack Obama seja o líder mais popular, suplantando o presidente brasileiro, que é o líder regional mais popular.
O fato de o responsável pela América Latina no Departamento de Estado, Arturo Valenzuela, ter dito que os Estados Unidos não têm nada contra a aproximação do Brasil com o Irã, mas espera que use esse relacionamento político para pressionar aquele país a aceitar as regras internacionais quanto ao uso pacífico da energia nuclear, só mostra que a contrariedade do governo Obama com a proteção diplomática que o governo brasileiro deu ao Irã quando todo mundo Ocidental, mais China e Rússia, o pressionavam, é menor do que a admissão de que o Brasil não é igual à Venezuela ou à Bolívia, países que foram criticados diretamente pela secretária de Estado, Hillary Clinton, justamente pela aproximação com o Irã.
E o Brasil é diferente não apenas por ser o líder regional, com crescente influência na política internacional, mas sobretudo porque Lula é identificado como uma liderança de esquerda não radical e democrática.
Foi Fidel Castro, o ditador cubano, quem dividiu os governantes de esquerda da região em “revolucionários” e “tradicionais”. A esquerda “tradicional”, que teria mais afinidades com a social-democracia europeia, seria representada por políticos como Lula ou Michelle Bachelet, do Chile, ou Tabaré Vázquez, do Uruguai, substituído por outro moderado, o ex-tupamaro José “Pepe” Mujica.
Os “revolucionários” estariam representados por Hugo Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; Rafael Correa, do Equador, ou Daniel Ortega, da Nicarágua, e a eles já não bastaria a democracia representativa.
Todos estão envolvidos, de uma maneira ou outra, em ações para ampliar seus poderes. Assim como Manuel Zelaya em Honduras, outro ponto de discórdia entre Estados Unidos e Brasil.
A Lula interessa manter essa dicotomia, desde que seja ele o elo entre os dois lados da esquerda e, muito ao contrário, quanto maior a radicalização de um Hugo Chávez, mais o presidente brasileiro se credencia como o negociador da estabilidade política na região.
Embora a esquerda latinoamericana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, e o senador Barack Obama seja considerado um liberal — o que nos Estados Unidos soa como “de esquerda” —, o governo Lula preferia um futuro presidente republicano, sobretudo por ser menos próximo dos tucanos.
Assim como a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação amistosa nasceu entre Lula e Bush. O americano tinha uma relação mais amistosa com o atual presidente brasileiro do que a que teve com Fernando Henrique, que declarou certa vez que sentiu “asco físico” por Bush. Essa rejeição intelectual não aconteceu com Lula, cujo temperamento afável é mais parecido com o do ex-presidente americano.
Por puro pragmatismo, Lula torceu pela reeleição de Bush, e gostaria de ver um republicano na Casa Branca de novo. Para continuar sendo a ponte do governo dos Estados Unidos com os governos de esquerda “revolucionária” da América Latina.
Quanto a Obama, mesmo que tenha sido chamado de “o cara” por ele e ver em sua trajetória política e de vida semelhanças com a sua, Lula acha que ele se cercou muito de assessores de Clinton, especialmente com a nomeação de Hillary para o Departamento de Estado. E acha que a máquina do estado americano já “domou” Obama, a quem considera inexperiente para se impor ao establishment.
Por características da política interna, Obama tem que fazer concessões aos conservadores republicanos, enquanto Lula as faz a políticos da direita fisiológica.
O choque pode ser inevitável, já que a área de política externa é a que Lula reservou para seu governo realizar uma política de viés esquerdista, para compensar a política econômica de continuidade do governo tucano.
Merval Pereira
O Lula hoje entrando no seu último ano de mandato estendido é um político em permanente ascensão popular, com uma votação que vai mudando territorialmente ao longo do tempo, até se transformar no principal líder da esquerda brasileira. Lula teve 17% da votação em 1989, 27% em 1994, e 32% em 1998, o que os especialistas chamam de “crescimento endógeno”, agregando os votos da esquerda: os 17% de Lula com os 16% de Brizola, em 1989, somam 33%; em 1994, os 27% do Lula com os 3% do Brizola chegam a 30%; e Brizola e Lula juntos em 1998 recebem 32% dos votos.
Mas essa liderança no espectro político de esquerda tem um contra pontono PSDB, a expressão de uma esquerda social-democrata que o derrotou duas vezes no primeiro turno graças à capacidade de Fernando Henrique Cardoso de ampliar sua coalizão partidária para a centro-direita.
O Lula que saiu, portanto, de 17% da votação no primeiro turno em 1989 para 48,5% no primeiro turno da eleição de 2006, e repetiu a mesma votação expressiva do segundo turno de 2002, recebendo mais de 60% dos votos do eleitorado, é um Lula diferente, mas que persegue a liderança da esquerda como um ativo político importante.
Em 1989, quando se identificava como “o candidato da classe trabalhadora”, tinha sua base nesse eleitorado de classe média de esquerda, basicamente nas capitais, e em concentrações industriais, como o Vale do Aço, o Sul Fluminense e a região do ABCD paulista.
E dependia do PT.
Quando se afirma como o principal líder de esquerda, para chegar à Presidência em 2002, tem que fazer o mesmo movimento para a centro-direita já feito pelo PSDB, e acaba indo para o interior do país, tornando-se hegemônico no Nordeste.
Na relação entre o Brasil e os Estados Unidos, o que está havendo é uma disputa de espaço político de influência na América Latina, também a partir da esquerda.
O que há de novidade é que o Brasil já é percebido como mais importante, em certas partes e em certos assuntos na região, do que os Estados Unidos, mesmo que o presidente Barack Obama seja o líder mais popular, suplantando o presidente brasileiro, que é o líder regional mais popular.
O fato de o responsável pela América Latina no Departamento de Estado, Arturo Valenzuela, ter dito que os Estados Unidos não têm nada contra a aproximação do Brasil com o Irã, mas espera que use esse relacionamento político para pressionar aquele país a aceitar as regras internacionais quanto ao uso pacífico da energia nuclear, só mostra que a contrariedade do governo Obama com a proteção diplomática que o governo brasileiro deu ao Irã quando todo mundo Ocidental, mais China e Rússia, o pressionavam, é menor do que a admissão de que o Brasil não é igual à Venezuela ou à Bolívia, países que foram criticados diretamente pela secretária de Estado, Hillary Clinton, justamente pela aproximação com o Irã.
E o Brasil é diferente não apenas por ser o líder regional, com crescente influência na política internacional, mas sobretudo porque Lula é identificado como uma liderança de esquerda não radical e democrática.
Foi Fidel Castro, o ditador cubano, quem dividiu os governantes de esquerda da região em “revolucionários” e “tradicionais”. A esquerda “tradicional”, que teria mais afinidades com a social-democracia europeia, seria representada por políticos como Lula ou Michelle Bachelet, do Chile, ou Tabaré Vázquez, do Uruguai, substituído por outro moderado, o ex-tupamaro José “Pepe” Mujica.
Os “revolucionários” estariam representados por Hugo Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; Rafael Correa, do Equador, ou Daniel Ortega, da Nicarágua, e a eles já não bastaria a democracia representativa.
Todos estão envolvidos, de uma maneira ou outra, em ações para ampliar seus poderes. Assim como Manuel Zelaya em Honduras, outro ponto de discórdia entre Estados Unidos e Brasil.
A Lula interessa manter essa dicotomia, desde que seja ele o elo entre os dois lados da esquerda e, muito ao contrário, quanto maior a radicalização de um Hugo Chávez, mais o presidente brasileiro se credencia como o negociador da estabilidade política na região.
Embora a esquerda latinoamericana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, e o senador Barack Obama seja considerado um liberal — o que nos Estados Unidos soa como “de esquerda” —, o governo Lula preferia um futuro presidente republicano, sobretudo por ser menos próximo dos tucanos.
Assim como a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação amistosa nasceu entre Lula e Bush. O americano tinha uma relação mais amistosa com o atual presidente brasileiro do que a que teve com Fernando Henrique, que declarou certa vez que sentiu “asco físico” por Bush. Essa rejeição intelectual não aconteceu com Lula, cujo temperamento afável é mais parecido com o do ex-presidente americano.
Por puro pragmatismo, Lula torceu pela reeleição de Bush, e gostaria de ver um republicano na Casa Branca de novo. Para continuar sendo a ponte do governo dos Estados Unidos com os governos de esquerda “revolucionária” da América Latina.
Quanto a Obama, mesmo que tenha sido chamado de “o cara” por ele e ver em sua trajetória política e de vida semelhanças com a sua, Lula acha que ele se cercou muito de assessores de Clinton, especialmente com a nomeação de Hillary para o Departamento de Estado. E acha que a máquina do estado americano já “domou” Obama, a quem considera inexperiente para se impor ao establishment.
Por características da política interna, Obama tem que fazer concessões aos conservadores republicanos, enquanto Lula as faz a políticos da direita fisiológica.
O choque pode ser inevitável, já que a área de política externa é a que Lula reservou para seu governo realizar uma política de viés esquerdista, para compensar a política econômica de continuidade do governo tucano.