sábado, 16 de outubro de 2010

O eleitor tiririca


Bem interessante o artigo de Fabio Gomes, sociólogo, do Instituto Informa, publicado hoje no Globo (“Raízes do voto em Tiririca”), tratando do distanciamento crescente entre a sociedade e a política. Revela sua perplexidade com o alto índice de não-votos (cerca de 24,5 milhões de abstenção mais cerca de 9,5 milhões de votos nulos ou em branco, na eleição para presidente). E trata ainda dos “não-votos” através de candidaturas como a de Tiririca (que está longe de ser a única). Fabio Gomes lamenta o desconhecimento cada vez maior do papel dos políticos e conclui que “sem a noção de representação e com a comunicação falha com os representantes, pior não fica”. Fabio só não fala (mas tenho certeza que pensa assim) que, sem uma reforma política profunda, não adianta ficar tiririca.

Raízes do voto em Tiririca
Fabio Gomes

Asociedade está distante da política. A frieza da relação do público com o processo eleitoral é sintomática de algumas evidências claras da cisão que se estabeleceu entre o público e o poder político. Dois aspectos fundamentais da democracia representativa estão ausentes na relação do meio político com a sociedade. Em primeiro lugar, há ausência do aspecto representativo na visão que os eleitores têm dos cargos legislativos. Os eleitores não percebem no Congresso e nas Assembleias Legislativas a essência representativa do interesse público. O segundo aspecto é a cisão que ocorre na comunicação dos eleitos com a sociedade: ausência do aspecto deliberativo, o diálogo dos representantes com os representados.
As ausências dos aspectos fundamentais produzem sintomas variados.
Cerca de 24 milhões de eleitores não compareceram às urnas, 18 em cada cem eleitores se abstiveram.
A ausência pode traduzir sentimentos variados. O eleitor se ausenta por não considerar seu voto um valor determinante para o processo democrático, uma vez que o impacto representativo de sua participação é irrisório. Assim, não participa esperando que os outros eleitores o façam.
O eleitor não comparece por não enxergar benefício direto em sua ação, uma vez que a possibilidade dos benefícios será alimentada pela participação dos demais. O eleitor pode se ausentar se outros compromissos forem priorizados, como viagens e férias.
Porém, o mais grave de uma ausência do eleitor é a não observância do dever cívico na ação de votar. Não percebendo os aspectos deliberativos e representativos, o eleitor não enxerga o seu papel social no arranjo democrático do processo eleitoral.
A cisão entre representantes e representados produz um campo de total desconhecimento do público sobre as funções de deputados e senadores.
Não conhecendo a função do cargo disputado, como o eleitor pode estabelecer critérios para escolha? O percentual dos votos não válidos traduz essa dissonância quando comparados entre os cargos. Na média nacional, o percentual de votos em branco e nulos para deputado estadual e distrital foi de 11,4%; para deputado federal, chegou a 12,2% — os votos nulos para deputados contemplam ainda os candidatos impugnados.
Para governador, o índice foi de 12,4%. Já para senador, função sobre a qual as p e s q u i s a s m o s t r a m maior desconhecimento dos eleitores, o índice de votos não válidos no Brasil foi de 23,8% — deve ser considerado aqui também o desconhecimento sobre a escolha de dois candidatos, que pode ter afetado os índices. Para presidente, o índice foi menor, 8,7% de votos não válidos.
Na disputa presidencial, os debates são mais claros, a dramaticidade da escolha mais presente, enfim, o conhecimento do eleitor sobre as razões do voto é mais elaborado por intermédio de informações mais sólidas que envolvem o cargo disputado.
A compreensão do sistema democrático como um arranjo de comportamentos, que envolve a percepção do público e as intervenções políticas, lança luz à relação fria do eleitorado com o processo eleitoral. A si-tuação é preocupante. Não é raro observar um comportamento com indiferença dos eleitores quando se deparam com escândalos de corrupção envolvendo políticos. A pauta negativa da política e a ausência de comunicação positiva transformam o comportamento do cidadão em apatia no que se refere ao mundo político. O eleitor brasileiro entende a política como um espaço de convivência em que a corrupção é cotidianamente praticada sem pudor. Diante de um novo escândalo, a tendência do eleitor é dizer: “Política é assim mesmo.” Nesta eleição, chamou muito a atenção a votação expressiva do palhaço Tiririca, eleito deputado federal por São Paulo. Como se outros Tiriricas não tivessem já sido eleitos. O contingente eleitoral deu relevo ao caso.
Como se um Tiririca com 1,3 milhão de votos fosse mais grave do que 25 Tiriricas com 50 mil votos. Os críticos culpam os eleitores. Mas a culpa é dos políticos que não mostram seu valor. Que não se mostram como elementos cruciais da democracia. A culpa é da cisão comunicativa, da ausência da consciência de representatividade.
A lamentável eleição de Tiririca não foi fruto de um embuste eleitoral.
O candidato tocou na ferida dos políticos ao conquistar votos com um discurso que contorna o que representam os políticos no imaginário popular.
Mensagens do tipo “pior do que está não fica” traduzem a cisão entre eleitos e representados, dramatizada pela pauta negativa dos políticos.
Uma vez não enxergada a solução para o cenário que se estabeleceu, parte dos eleitores busca o voto-protesto, sem dimensionar as consequências de uma escolha mal feita. Afinal, sem a noção de representação e com a comunicação falha com os representantes, pior não fica.