Governar não é a arte do impossível – mais do que qualquer outra coisa é simplesmente a arte do possível. Dilma está (aparentemente) demonstrando isso, principalmente nesse início de segundo mandato. Não dá para governar enfrentando os donos do capital/comunicação e sair impune. A campanha eleitoral recente deixou isso bem claro. E Dilma começa essa nova fase dando mostras de que entendeu o recado. Sem um Congresso confiável e a corrupção entranhada no país inteiro não há como bater no peito e declarar “ganhei a eleição e fim de papo”. Ganhou-se apenas uma eleição, não uma revolução. E mesmo nas revoluções é preciso saber dar um passo atrás e dois à frente. É difícil engolir a fazendeira Kátia Abreu como possível Ministra da Agricultura. Ou os representantes do mercado assumindo a direção de nossa economia. Mas esse é o momento para as esquerdas saberem se unir e ganhar força para novas conquistas e, como primeiro passo, mobilizar o país por uma reforma política profunda. Talvez isso possa compensar o desânimo de pessoas como Janio de Freitas em (mais um de seus excelentes artigos) “O primeiro passo”, publicado neste domingo, na Folha.
O primeiro passo
Janio de Freitas
Folha, 23/11/2014
A escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, vista de fora, é uma decisão política, não econômica. Faz supor uma escolha de Dilma Rousseff por temor da voracidade com que os conservadores ambicionam a retomada do Poder perdido. Presenteia-os, parece, na suposição de aplacá-los.
De fora, ainda não há como saber –e muito menos crer– de algum entendimento prévio sobre linha de política econômica que possa tornar a escolha mais inteligível. Seja como for, coerente com o sentido da campanha de Dilma, não é.
A escolha não tem coerência nem com o momento em que é feita. Na manhã mesma em que fez uma reunião para definir a escolha, liberada não oficialmente à tarde, o caderno "mercado2" da Folha apresentava como manchete: "Desemprego recua em outubro e atinge 4,7%; renda bate recorde". A seção "Economia" do "Globo", com uma nota na primeira página, também dava como manchete: "Emprego em alta, renda recorde".
Aos dois jornais não faltaram, claro, o "mas" e o "apesar de". Ainda assim, das manchetes pode-se entender que a economia esteja mais para o massacrado Guido Mantega do que para o Joaquim Levy que bem poderia ser ministro em um governo de Aécio Neves.
O histórico de Joaquim Levy não deixa dúvida sobre o seu conservadorismo, posto em prática evidente ao menos desde que foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento no governo Fernando Henrique. Conservadorismo confirmado no governo Lula, quando foi um dos inspiradores da política econômica que consagrou Antonio Palocci nos setores do domínio financeiro. E conservadorismo consolidado como secretário do Tesouro, quando Levy foi o ponto de resistência a gastos e outras medidas de linha social pretendidas no governo Lula.
Caso o histórico não baste, o presente garante: se não fosse adepto de concepções do conservadorismo neoliberal, Joaquim Levy não seria diretor do Bradesco. O que prova não se tratar, até agora, de pessoa incoerente.
Também sem comunicação oficial quando escrevo, a apontada indicação da senadora Kátia Abreu para a Agricultura sugere, ou confirma, uma disposição incomum de Dilma Rousseff para incrementar problemas com as correntes não conservadoras. A senadora exerce com muita competência a liderança do agronegócio e dos grandes proprietários de terra. Mas nem todos os interesses que defende coincidem com o que deveriam ser objetivos do governo, de todo governo.
Dilma Rousseff entra no segundo mandato devendo muito para reparar os desempenhos deploráveis do seu governo em três capítulos da desgraça nacional: o problema indígena, sem as demarcações territoriais devidas e com o genocídio em progressão; a questão fundiária em geral, com imensos territórios tomados e explorados; e, ainda e sempre, a reforma agrária, pendente de correções e de avanços. Três assuntos em que o responsável pela Agricultura tem deveres e poderes muito grandes. Três assuntos em que os interesses representados pela senadora Kátia Abreu conflitam, em todos os sentidos desta palavra, com as vítimas e com as obrigações e as dívidas administrativas e sociais do governo Dilma.
O primeiro movimento para o novo governo parece feito em marcha a ré.