Muito bom de ler – para melhor conhecer – esse artigo que Fernando Henrique publicou hoje no Globo, “Política externa responsável”. Logo no primeiro parágrafo encontramos termos como “basófias” e “bordão” que dão a certeza de que se trata de documento de outra época somente agora revelado.
Avançando na leitura, encontramos o relato óbvio de que nossa diplomacia sempre defendeu os valores democráticos, a busca pela paz entre as nações, sua igualdade jurídica e nossos interesses econômicos.
Em seguida, o texto parece procurar se justificar com o Terceiro Mundo – que sempre foi o nosso mundo – ao dizer que “não nos distanciamos do que então se chamava de Terceiro Mundo. Se não nos juntamos propriamente ao grupo dos ‘não alinhados’, dele sempre estivemos próximos”.
Depois, um trecho que parece inexplicável: “nunca nos solidarizamos com o grito de “delenda Israel”, nem com as afrontas de negação do Holocausto”. Fernando Henrique pretende com isso acusar o Governo Lula de fazer algo que nunca fez. E a partir daí percebemos que se trata de um texto vindo de outra época, carregado de ego, que (apesar de citar atitudes soberanas e óbvias tomadas pelo Brasil no Governo passado) veio ao nosso mundo defender algo inteiramente superado que é o atrelamento incondicional do Brasil aos interesses americanos.
A questão central é o sucesso e a projeção do Brasil na elaboração do Acordo Nuclear de Teerã. Fernando Henrique, por vaidade e por ideologia, não aceita o acordo e se apresenta descalço lado a lado com Hillary Clinton. Ele – que além de Presidente foi Ministro das Relações Exteriores – parece querer dar aulas ao peão Lula dizendo que “o xis da questão (...) seria a obtenção pelo Brasil e pela Turquia de garantias mais efetivas de que tal (a fabricação da bomba no Irã) não acontecerá”. Esquece (como fez Hillary) que a garantia que Brasil e Turquia obtiveram foi a mesma exigida por toda a comunidade internacional. Além disso, é impossível garantia total e o melhor que se pode fazer – como deixam claro todos os analistas – é tentar recuperar a confiança entre as partes. O Governo Hillary Clinton não está interessado nisso. Exige que o Irã tire os sapatos e se “agache”. Coisa que não exige de Israel, que nem mesmo assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
Ao final, analisando bem o alfarrábio produzido por Fernando Henrique, podemos concluir que o sucesso de Lula – seja na política internacional, seja na política interna e principalmente no processo eleitoral – parece que lhe faz doer os calos. E em política, como ele mesmo diz, “così è (se vi pare)”.
Política externa responsável
A despeito das bazófias presidenciais que, vez por outra, voltam ao bordão de que “hoje não nos agachamos mais” perante o mundo, se há setor no qual o Brasil ganhou credibilidade e, portanto, o respeito internacional, foi o das relações exteriores. Elas sempre foram orientadas por valores e estiveram intransigentemente fincadas no terreno do interesse nacional. A demagogia presidencial não passa de surto de ego deslumbrado, que desrespeita os fatos e mesmo a dignidade do país.
Com exceção dos flertes com o totalitarismo europeu durante o Estado Novo, sempre nos orientamos pela defesa dos valores democráticos, pela busca da paz entre as nações, por sua igualdade jurídica e pela defesa de nossos interesses econômicos. Com toda a dificuldade do período da Guerra Fria — quando os governos militares se opuseram ao mundo soviético e a seus aliados —, não nos distanciamos do que então se chamava de Terceiro Mundo. Se não nos juntamos propriamente ao grupo dos “não alinhados”, dele sempre estivemos próximos. Terminada a Guerra Fria, restabelecemos relações com os países do campo socialista, Cuba e China à frente, voltamos a estar mais ativamente presentes na África, apoiamos o Conselho de Segurança nos conflitos entre Israel e a Palestina, sustentamos a posição favorável à criação de “dois Estados” e o respeito às fronteiras de 1967, e nunca nos solidarizamos com o grito de “delenda Israel”, nem com as afrontas de negação do Holocausto.
Seguindo esta mesma linha, assinamos o Tratado de Não Proliferação de Armas Atômicas (TNP), com ressalvas quanto à manutenção dos arsenais pelos “Grandes”, fomos críticos das invasões unilaterais no Iraque e só aceitamos a intervenção no Afeganistão graças à supervisão das ações bélicas pela ONU. A reação ao unilateralismo foi tanta que, em discurso na Assembleia Nacional da França, cheguei a aludir à similitude entre o unilateralismo e o terrorismo, provocando certo malestar em Washington. Procedemos de igual modo na defesa de nossos interesses como país em desenvolvimento. No dia em que se publicarem as cartas que dirigi aos chefes de Estado do G-7, ver-seaacute; que predicávamos desde então maior regulação financeira no plano global e maior controle do FMI e do Banco M u n d i a l p e l o s p a í s e s emergentes. Reivindicamos nossos direitos comerciais na OMC, a começar pelo caso do algodão, e, no caso das patentes farmacêuticas, defendemos vitoriosamente em Doha o ponto de vista de que a vida conta mais que o lucro.
Todas estas políticas tiveram desdobramentos positivos no atual governo.
Temos, portanto, credenciais de sobra para exercer uma ação mais efetiva na condução dos negócios do mundo. A hegemonia norte-americana vem diminuindo pelo fortalecimento econômico dos Brics (metáfora que abrange não só os quatro países, mas vários novos atores econômicos), especialmente da China, pela presença da União Europeia, e também vem sendo minada pelas rebeliões do mundo árabe e muçulmano, como o próprio governo Obama reconhece. É natural, portanto, que o Brasil insista em sentar à mesa dos tomadores de decisões globais. Sendo assim, por que a celeuma causada pela tentativa de acordo entre Irã e a comunidade internacional empreendida pelo governo brasileiro? Há duas ordens distintas de questões para explicar o porquê de tanto barulho. A primeira é a falta de clareza entre a ação empreendida e os valores fundamentais que orientam nossa política externa. A segunda é a forma um tanto retórica e pretensiosa que ela vem assumindo.
Quanto ao primeiro ponto, como compatibilizar o repúdio às armas nucleares com a autonomia decisória dos povos? Esta abrange inclusive o direito ao conhecimento de novas tecnologias, mesmo as “duais”, que tanto podem ser usadas para a paz como para a guerra. Em nosso caso, conseguimos, por exemplo, dominar a técnica de foguetes propulsores de satélites (e quem lança satélite pode lançar mísseis). Ninguém desconfia, entretanto, de que a utilizaremos para a guerra, até porque obedecemos às regras do acordo internacional que regula a matéria. Do mesmo modo, dominamos o ciclo completo de enriquecimento do urânio. Mas não cabem dúvidas de que não estamos fazendo a bomba atômica, não só porque nossa Constituição proíbe, mas porque inexistem ameaças externas e porque submetemos o enriquecimento do urânio (guardado o sigilo da tecnologia usada) ao duplo controle de um tratado de fiscalização recíproca com a Argentina e da Agência Internacional de Energia Atômica.
É precisamente isso que falta no caso do Irã: a confiabilidade internacional nos propósitos pacíficos do domínio da tecnologia.
E é isso que o governo americano alega para recusar a intermediação obtida, ao reafirmar que a quantidade de urânio já disponível, mesmo descontada a quantidade a ser remetida para enriquecimento no exterior, permitiria a fabricação da bomba. O xis da questão, portanto, seria a obtenção pelo Brasil e pela Turquia de garantias mais efetivas de que tal não acontecerá.
Deixando de lado as alegações recíprocas sobre se houve o estímulo americano à ação intermediadora (que, para quem quer ter uma posição independente na política externa, é de somenos), uma ação eficaz para evitar o confronto e as sanções — posição coerente com nossa tradição negociadora — deveria buscar desfazer a sensação da maioria da comunidade internacional de que o governo iraniano está ganhando tempo para seguir em seus propósitos nucleares.
Neste ponto, a retórica dos atores brasileiros parece ter falhado.
O levantar de mãos de Ahmadinejad e Lula, à moda futebolística, e as declarações presunçosas do presidente brasileiro passando a impressão de que havíamos dado um drible nas “grandes potências”, digno de Copa do Mundo, reforçaram a sensação de que estaríamos (no que não creio) nos bandeando para o “outro lado”. E em política internacional, mais do que em geral, così è (se vi pare).