sábado, 11 de novembro de 2006
Choque de impressão
O momento que vivemos chega a ser vergonhoso para nossa imprensa, que parece procurar se sustentar unicamente à base de escândalos e mau uso dos princípios do jornalismo. Certos jornalistas dizem, em sua defesa, que estão sendo acusados de retratarem os fatos. Mas não é verdade. Mais do que nunca estão distorcendo os fatos. Criam realidades falsas a partir da construção de percepções enganosas. Isso é feito, por exemplo, com diagramações forçadas, onde uma foto ou uma ilustração ou um texto “mal” colocado podem levar a interpretações diferentes do que está exposto no texto. Lembro de um exemplo de muitos anos atrás onde um jornal do Maranhão (que tinha um propósito brincalhão) fez uma primeira página onde a foto de Vitor Civita, presidente do Grupo Abril, em visita à região, parecia ilustrar a matéria sobre a prisão de famoso contrabandista. Há exemplos de palavras e frases fora de contexto, ou com significado dúbio, como fez o jornal O Globo recentemente com a manchete “PT usará facção do crime para abafar dossiê", onde a palavra “facção” poderia ser interpretada como “PCC”, “Comando Vermelho” ou qualquer outro grupo sabidamente criminoso. Mas certos jornais e certo jornalismo vão além. Usam falsos dossiês, quebras de sigilos bancários e telefônicos, todo tipo de invasão de privacidade e factóides que possa ajudar na venda de jornais, aumentar audiência ou contribuir para propósitos de ganhos políticos ou financeiros. Levam ao extremo a dualidade realidade-percepção, criando contradições em proveito próprio. O advogado constitucionalista e professor da PUC-SP Pedro Estevam Serrano, em entrevista ao site Última Instância, sobre a já famosa quebra de sigilo da Folha, chega a declarar que “há muito interesse de vender jornal por trás desse discurso do interesse público de divulgar”. No seu Blog de hoje, em texto intitulado "A mídia e os direitos fundamentais", Luis Nassif também expõe as mazelas desse jornalismo que tem sido praticado pela grande imprensa à revelia dos bons jornalistas que sobrevivem. Ele cita o próprio livro, "O Jornalismo dos anos 90”, onde aborda “dezenas de episódios em que a mídia atropelou os direitos mais comezinhos de vítimas de arbitrariedades policiais e do Ministério Público, que se associou a chantagistas para divulgar dossiês incriminatórios contra adversários, que desrespeitou sigilo fiscal, telefônico e pessoal de pessoas, expondo-as a manchetes e capas, sem comprovação do crime”. Luis Nassif diz que o livro “era crítico em relação aos anos 90, mas terminava com uma visão otimista, de que a única saída da mídia seria aprimorar-se, porque os leitores seriam cada vez mais exigentes e não aceitariam carne de terceira”. Mas ele reproduz dois capítulos do livro e sugere que sejam lidos “à luz do que foi a mídia nos últimos anos”. Recomendo a leitura, com ênfase no que ele chamou de “Manual de Sobrevivência”, onde orienta o leitor ou o espectador para que não aceite como verdade incontestável tudo que sai em letra impressa. Nem que deixe de conferir se há lógica nas reportagens. Nem que se deixe levar por acusações sem provas. Nem que “acredite no jornalista que, ao mencionar determinadas gravações, use adjetivos tonitruantes para qualificá-las (“explosivas”, “impactantes”), mas não mostre nem a cobra nem o pau”. Trabalhar com a percepção ou o imaginário do público é uma responsabilidade muito grande. Talvez seja o momento de aprofundar as reflexões sobre o que está acontecendo com o jornalismo e propor ações capazes de recuperar a dignidade e a busca de alguma objetividade no que se produz. Retratar os fatos, mas não com “objetiva” ou objetivo qualquer. Com certeza, as novas tecnologias da comunicação contribuirão para esse choque de renovação jornalística. Mas é preciso antes de tudo a vontade e a mobilização dos bons jornalistas.