sábado, 4 de novembro de 2006
Good night and good luck
Dias atrás fui questionado por que dava muita atenção a Cesar Maia, “um político medíocre”, dizia o texto. Respondi que considero César Maia a principal referência da oposição de direita no Rio de Janeiro e, mesmo não concordando com suas idéias, ele tem o seu valor – principalmente por estar sabendo dominar as novas tecnologias de marketing (pesquisa e comunicação) e por estar sabendo pautar a imprensa nacional. Às vezes eu mesmo me questiono por certos temas que escolho. E diversa vezes me questionei por ainda ler a coluna do Merval Pereira no jornal O Globo. Seu texto costuma ser um amontoado de idéias atrasadas e, geralmente, mal acabadas. Nos últimos dias ele se dedicou a hastear a bandeira da “liberdade de imprensa versus Governo Lula”. De forma tão primária, que dá raiva. Na essência, ele acusa o Governo Lula e o PT de tentarem acabar com a liberdade de imprensa, por causa das reações do Governo e de petistas à forma de cobertura que a grande imprensa fez das eleições deste ano. Os jornalistas que apoiaram os protestos de Lula são tratados indistintamente como “chapa-branca” (talvez para distinguir de “chapa-marrom”...). Não vou perder tempo em tratar de tudo o que foi escrito, pincei alguns tópicos. Diz Merval em sua coluna de 2 de novembro “Informação x opinião”: “Ao mesmo tempo em que tentam minimizar o papel dos meios de comunicação, petistas e jornalistas chapa-branca os acusam de terem provocado o segundo turno com as reportagens sobre os petistas presos com R$ 1,7 milhão para comprar o dossiê contra os tucanos. Culpam as reportagens pelos fatos que retrataram”. Grifei as últimas palavras exatamente para demonstrar a hipocrisia nisso tudo. Ninguém tem dúvida de que a aventura aloprada em busca de um dossiê bombástico aparentemente anti-Serra é em si, digamos assim, a causa (ou uma das causas) do 2º turno. Mas essas coisas não existem em si. Elas existem em uma comunicação desses fatos, tanto para fazer sucesso quanto para fazer fracasso. Quando Merval fala em “fatos que retrataram” ele parece, de forma medieval, afirmar que os fatos existem em estado puro. Esquece do verbo que usou (retratar) e de um instrumento muito importante na profissão que ele exerce – as lentes utilizadas para retratar. Por mais que a função da imprensa seja acima de tudo “retratar os fatos”, isso só se faz com um conjunto variadíssimo de lentes. Há quem prefira lentes normais, com menos distorção. Há quem prefira teles ou a grande distorção de uma “olho de peixe”. Há até quem prefira aplicar grande número de filtros. E aqui entre nós, na maior honestidade, nunca vi tantas lentes e filtros distorsivos para “retratar os fatos” como vi nas mãos da grande imprensa durante os últimos meses. Lembro particularmente da primeira página do jornal O Globo no dia seguinte ao depoimento de José Dirceu, acho que na Comissão de Ética ou terá sido em uma daquelas CPIs. Uma foto imensa mostrava José Dirceu em segundo plano, com os óculos meio tortos, cara aparvalhada, enquanto em primeiro plano, gigantesco, grandioso, tínhamos Roberto Jéferson. A foto estava longe de pretender simplesmente “retratar os fatos”. Ela foi publicada com todos os filtros necessários para predispor a opinião pública contra José Dirceu. E o que dizer da manchete, também do jornal O Globo, “PT usará facção do crime para abafar dossiê"? É para levar a sério o “esclarecimento” da redação? Vejamos o que dizia: "A manchete do Globo em nenhum momento tentou sugerir ligação do PT com uma facção criminosa. Se alguns leitores fizeram essa leitura, isso se deve a um erro de formulação do jornal". A luta para publicar as fotos do dinheiro do dossiê, entremeada de conchavos com um delegado de polícia, era para “retratar os fatos” (que já tinham sido retratados) ou para colar uma percepção negativa ao candidato Lula? Merval Pereira procura dar consistência a sua bandeira com citações de figuras célebres, como Baudrillard, Bourdieu e até com uma citação do jornalista Jack Anderson citando Thomas Jefferson (“se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução” – com todo respeito às citações e à sua seriedade, uma frase de efeito, parecendo muito mais jogada de marketing). E já que chegamos ao terreno das citações, seria interessante Merval reassistir o filme de George Clooney, “Good Night and Good Luck”, esse excelente libelo anti-macartista e belíssima defesa da liberdade de imprensa e das liberdades individuais, de um modo geral. Nele, o jornalista Ed Murrow, na cruzada contra o senador raivosamente anticomunista McCarthy, utiliza ótimas lentes para retratar a realidade com toda fidelidade. E o seu trabalho é fundamentado em um princípio: acusação não pode significar condenação. Em outras palavras, a imprensa, para ser levada a sério, não pode fazer o que a grande imprensa fez aqui, num macartismo às avessas, usando de todo um arsenal distorsivo em nome da liberdade de imprensa com o objetivo único de condenar, derrotar politicamente o governo, importando-se muito pouco com “retratar os fatos”. Uma verdadeira aberração do papel da imprensa. A população viveu meses de terror entre as balas perdidas dos noticiários. Era como se diariamente as notícias fossem encerrados com a frase: “Good night e bad luck”...